quarta-feira, 15 de junho de 2011

FERNANDO PESSOA, SALAZAR E O ESTADO NOVO

Durante muitos anos, o nacionalismo do Poeta da Mensagem foi confundido com o “nacionalismo” de António de Oliveira Salazar.


Nada mais errado, de acordo com os textos divulgados por vários estudiosos, com destaque para Joel Serrão, Teresa Rita Lopes e Teresa Sobral Cunha.


Só agora aprecem num só volume os textos dispersos por livros e revistas, neste Fernando Pessoa, Salazar e o Estado Novo. Da autoria do Poeta nacionalista, com introdução e notas explicativas sobre os 5 poemas e 3 dezenas de comentários em prosa. E se alguém tinha dúvidas sobre o anti-salazarismopessoano deverá perdê-las, assim como em torno de outras ideias políticas, tema que será ampliado com o Dicionário de Política.


Com o título de Ensaios Políticos (Ideias para a reforma da Política Portuguesa) (s/d), o escritor “Petrus” (pseudônimo de Pedro Veiga) divulgou num livro de 166 páginas 4 trabalhos que Fernando Pessoa subscrevera em várias publicações, abstraindo, é claro, dos textos políticos que a censura cortaria e que só agora puderam aparecer – “Petrus” foi um pioneiro dos estudos sobre o criador dos heterônimos, ao lado de João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Jorge de Sena, António Quadros, Teresa Rita Lopes, Joel Serrão, Eduardo Lourenço e outros.


É certo que as ideias políticas de Pessoa somente puderam ser conhecidas com o fim da censura em Portugal, fazendo cair a máscara dos que o aparentavam ao fascismo. No fundo, os poemas da Mensagem tinham tanto a ver com o regime como Os Lusíadas de Camões, obras que eram frequentemente identificadas com o salazarismo – confusão habitual entre os defensores das ditaduras. É claro que Pessoa esteve ausente da solenidade em que lhe atribuíram o “Prêmio Antero de Quental”, instituído pelo governo e foi galardoado pelo “melhor poema”.Havia duas modalidades, a do livro (com 100 páginas, no mínimo) e a do poema, e Mensagem contava não mais de 98!


O véu começou a ser desvendado com a edição, em 1978, do volume DaRepública (1910-1935), apresentado e organizado por Joel Serrão, e do Pessoa Inédito (1993), de Teresa Rita Lopes, e de vários textos revelados por António Quadros e Teresa Sobral Cunha, entre outros. Na verdade, tanto em relação a Pessoa como a tantos escritores é a soma de contribuições que conta.


Foi assim que selecionamos, além dos 5 poemas, mais 5 textos em prosa, divulgados por Joel Serrão, os 15 escolhidos por Teresa Rita Lopes e 1 por Teresa Sobral Cunha, graças aos quais concluiremos que condição nacionalista de Fernando Pessoa nada tinha a ver com Salazar e a Ditadura, que começou por ser militar (1926) e depois fascista, sob a capa do Corporativismo (após 1933). Indiscutivelmente, os documentos ora reunidos definem o pensamento pessoano perante o regime ditatorial e as suas consequências políticas, econômicas, sociais e culturais.


Há pormenores que merecem ser salientados e abrimos com a carta de 1935 (em Pessoa Inédito vêm mais 5 breves cartas de Fernando Pessoa ao mesmo destinatário – o Presidente da República, General Oscar Carmona – mas que não chegaram a ser enviadas). Declarando-se autor dos poemas nacionalistas de Mensagem e do artigo “Associações Secretas” (Diário de Lisboa, 9-2-1935), na condição de “templário”, pondera Pessoa, na 1ª carta, que a Ditadura em Portugal percorreu 3 fases:


1) “A de simples defesa própria e da expectativa (28-5-1926) até à chegada do Professor Oliveira Salazar ao Ministério das Finanças” (23-4-1928);


2) Veio depois a fase da consolidação da ditadura “pela ação enérgica, paciente e cuidadosa” de Salazar (“equilíbrio dos orçamentos e por outros efeitos análogos ou similares”);


3) A fase seguinte “começou por afirmar-se no Integralismo Monárquico disfarçado do Estado Novo” e continuou pelo Estado Corporativo até que o regime se tornou “integralmente integral, isto é, francamente inimigo de duas coisas: da dignidade do Homem e da liberdade do Estado”. Por fim, Salazar impôs diretrizes: “Até aqui a ditadura não tinha tido o impudor de, renegando toda a verdadeira política do espírito acima da política – por intimar quem pensa a que pense pela cabeça do Estado, que a não tem, ou de vir a intimar a quem trabalha a que trabalhe livremente como lhe mandam”.


A seguir, o escritor cataloga Salazar entre os dominicanos, e não de feição jesuítica: “Ele é minucioso, mas não é sutil: tem astúcia, mas não diplomacia; não tendo nem encanto nem maleabilidade, é incapaz de captação direta ou indireta. Se o seu aspecto duro e manhoso lhe valeu, como definição fisionômica, esse epíteto frequente, conviria sugerir aos autores de (…) que a palavra ‘seminarista’ é uma fotografia muito mais exata do ditador português.” E prossegue o retrato psicológico: “Inteligente sem maleabilidade, religioso sem espiritualidade, ascético sem misticismo, este homem é de fato um produto de uma fusão de estreitezas. A alma campestre sórdida do camponês de Santa Comba se alargou em pequenez pela educação do seminário, por todo o inumanismo livresco de Coimbra, pela especialização rígida do seu destino desejado de professor de Finanças. É um materialista católico (há muitos), um ateu nato que respeita a Virgem.”


Salazar é um incapaz, opina o intelectual Fernando Pessoa: “Para governar um país como chefe, falta-lhe, além de qualidades próprias que fazem diretamente, num chefe, a qualidade primordial – a imaginação. Ele sabe talvez prever, ele não sabe imaginar. Ele mesmo mostrou desdém por aquilo a que chamou “os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência” (discurso de 21-2-1935); Na realidade, “a frase de Salazar, mesmo que tenha esta origem sordidamente instintiva, é ainda mais infeliz do que parece. O Ditador dirigia-se a escritores e a poetas, era a eles que ordenava não sonharem. Ou ele quer que os escritores portugueses escrevam sempre sem pensar ou quer que nas suas obras não figure nada que seja sonho. Só se fará, portanto, em Portugal, poemas ou romances sobre as coisas materiais da vida. Salazar, aqui, revela-se um Zola.”


O Poeta não perdoa o sacrilégio cultural: “Em Salazar há sempre o materialista, o contabilistazinho. Não se pode sonhar porque o sonho não é remunerável. Não se deve sonhar porque nos arriscamos a enganar quando sonhamos diante de uma operação aritmética”. E joga mais uma farpa, interrogando: “E esse Mussolini que Salazar tanto admira, será que a saudade do Império romano não tem nada a ver com o seu ímpeto e a sua bravura?”


Salazar copia as ditaduras, porém à sua maneira, vaidoso que espera os parabéns, isto é, o apoio, mesmo que não seja honesto. Que elogiem o governo! O Poeta não aceita submeter-se: “Como naturalmente é de todo impossível que seja que homem for esteja sempre de acordo com qualquer outro que seja, resulta daí que me devo curvar como escravo integral, louvando por profissão e diariamente, ou que só devo publicar um artigo quando estiver de acordo com a ação do governo, não dizendo nada nos casos contrários. A solução natural ‘é nada publicar’ – ou, como aconteceu no inverno fascista, escrever para a gaveta…”


Desiludido, dirá ao Presidente da República que os discursos ditatoriais “não são maneiras de falar”, pois “o que torna Salazar odioso ao povo é que ele encarna a supressão de toda a liberdade pública – de falar, de escrever, de se reunir”. Os portugueses estavam no beco sem saída: “Em conclusão a Ditadura Portuguesa só se mantém por duas razões – o medo do comunismo e a insubstitubilidade de Salazar. Não são, é certo, aspectos fortes no campo moral, tanto mais que são negativos, mas talvez sejam bastante fortes no campo estritamente material e prático. É ainda o alcoolismo sociológico”, isto é, o eventual sucessor de Salazar “não saberia abolir a censura nem estabelecer as outras liberdades”…


O grande equívoco”


É com este título que Teresa Rita Lopes abre os 19 textos do Pessoa Inédito, incluindo as 6 cartas ao Presidente da República e 2 poemas, num dos quais (com data de 1932) Fernando Pessoa dizia que Salazar era “um cadáver emotivo, artificialismo organizado pela propaganda”. E três anos mais tarde condenava a “cesarização de um contabilista”, acrescentando: “O Chefe do Governo não é um estadista: é um arrumador”.


Em outro documento nem o considerava “um financeiro”, além de seguir a linha “dogmática e intolerante” de certos católicos. Exemplificava que, com a chamada revolta da Ilha da Madeira (2-7-1932), Salazar “mudou o rumo da Ditadura”, imitando o golpe de Primo de Rivera e aproximando-se de Mussolini. Aliás, os regimes nazi-fascistas são igualmente comentados: “Mussolini e Hitler agarram-se à absoluta banalidade das suas ideias [e são-no...] de outro modo. Salazar, incontestavelmente mais inteligente do que qualquer um deles, quer ter ideias e é aí que se perde no disparate e na contradição. Também ele só tem ideias banais, mas são banais a um nível mais elevado. Hitler e Mussolini têm ideias banais de homem do povo; Salazar tem ideias banais de homem culto. Acontece-lhe o que os ingleses chamam ‘cair entre dois bancos’: a sua banalidade não toca o povo porque é de origem cultural, repugna às elites, porque é banalidade”.


Teresa Rita Lopes divulga mais as 6 cartas (todas datadas de 1935) ao Presidente da República e na 1ª o Poeta elogia o democrata António José de Almeida pela sua “eloquência”, assim como Sidónio Pais (que foi assassinado por desordeiros políticos), enquanto na carta seguinte proclama que o ditador é “incompetente para o cargo que assumiu”. Na 3ª sublinha que o discurso sobre os prêmios literários “enxovalha todos os escritores portugueses – muitos deles seus superiores intelectuais com a fútil imposição de ‘diretrizes’ que ninguém poderia aceitar por não compreender quais sejam” (…), chamando-lhe “aldeão letrado” e incapaz de governar “uma república aristocrática”.


Acresce que o ditador não passa de “executor de ideias de outrem, visto que as não as tem próprias, de secretário de prestígio alheio. Porque não o pode conquistar” (referência possível ao jornalista e escritor António Ferro, que foi ligado ao movimento modernista e Salazar nomeou Secretário da Propaganda Nacional). E fustiga depois: o “chefe” assumiu a “posição, presentemente mais que régia, da Presidência do Conselho. / Realmente, é um Estado Novo, porque este estado de coisas nunca antes se viu.” Finalmente, na 6ª carta, Pessoa entende que “passou a época da desordem e da má administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós que não tenha saudade da desordem e da má administração.”


O que mais protestar sem liberdade, mas com censura? Para alguns, Oliveira Salazar era indiscutível e, por isso, Fernando Pessoa (por volta de 1933) concluiu ironicamente – “Mais valia publicar um decreto-lei que rezasse assim”:


“Art. 1 A(ntonio) d(e) O(liveira) S(alazar) é Deus.”


“Art. 2. Fica revogado tudo em contrário e nomeadamente a Bíblia”.


E o Poeta afirma que deste modo ficaria instituído “o autêntico Estado Novo – a Teocracia pessoal” e, por acréscimo, “o sovietismo direitista da U(nião) N(acional).”


Os erros de Salazar


No capítulo que rotulou de “Interregno-II”, apresenta Joel Serrão alguns textos que são também essenciais para a compreensão do que pensava Fernando Pessoa do regime salazarista.


Observa-se que, em 1928, o escritor publicara Interregno – Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal: o alvo eram as desordens políticas nas ruas e a desordem financeira no governo. Quem o condenará pelo que escreveu e pensavam os portugueses, naquele tempo? Está fora de dúvida que os resultados econômico-financeiros, desde a chegada de António de Oliveira Salazar ao poder, foram bem aceitos. Ele começara a arrumar o que era preciso, mas foi preparando simultaneamente a sua instalação no poder, que perdurou por mais de quatro decênios.


Muito antes de 1935, o autor de Mensagem (que morreu em 30 de novembro deste ano) arrependera-se das boas perspectivas que augurara, mas nada poderia fazer – Salazar era apoiado não somente pela maioria dos militares mas também pelos numerosos civis que, por convicção ou interesse, viram no ditador que despontara a solução para os males nacionais. Em 1935, com o “Interregno-II”, Pessoa admitiu o engano: “Escrevi no princípio de 1928 um folheto com o mesmo título que o presente (…). Dou hoje esse título por não escrito; escrevo este para o substituir”.


Explicou ainda: “Quando escrevi o outro folheto, em fins de 1927, estávamos ainda longe do Estado Novo e da nova Constituição, embora já perto, sem que o soubéssemos, da vinda e primeira fase de Salazar. Havia de fato interregno, isto é, a Ditadura era, propriamente, uma Ditadura de interregno. Com a votação da nova Constituição estávamos já num regime: o Interregno cessou. Nada importaria, ou importa, o julgar mau o Estado Novo. Existe. O Interregno cessou”.


Entretanto, há outros pontos de vista pessoanos que vale a pena relembrar:


1) “É, a meu ver, um erro de Salazar o filiar o espírito de partido – pelo menos entre nós e nos países latinos – na aprendizagem de arguir e defender que se faz ou faria em certas escolas.”


2) Doutrina estadonovista: “(…) não me proponho discutir a nova Constituição ou o Estado Corporativo; a ambos aceito, por disciplina; de ambos discordo, porque não concordo.”


3) O Poeta nacionalista não crê na “admiração” que o salazarismo estava despertando no mundo e salienta: “O prestígio de Salazar não se deriva da sua obra financeira, tanto porque, sendo essa obra uma obra de especialidade, o público não tem competência, nem pretende ter competência, para a compreender. Como porque o acolhimento calorosamente favorável, que essa obra teve, denotava já um prestígio anterior. O prestígio de Salazar nasceu vagamente da sugestão do seu prestígio universitário e particular, mas firmou-se junto do público, logo desde as suas primeiras fases como ministro, e as suas primeiras ações como administrador, por um fenômeno psíquico simples de compreender.”


4) As Ditaduras Militar e a de Salazar foram comparadas por Fernando Pessoa: “Há razões para supor (…) que dois terços do país estão com a Ditadura Militar. O que não há razão para supor é que os mesmos dois terços do país, ou qualquer coisa que se pareça com esses dois terços, esteja com o Integralismo Lusitano, cujos princípios, aliás estrangeiros, se nos querem impor como soma de ciência social e necessária condição nossa, pelo Manifesto do Governo e o Relatório Salazar.”


Outras considerações do autor de Mensagem poderiam ser aduzidas, a partir dos livros de Teresa Rita Lopes e de Joel Serrão, entre outros, para justificar o seu desacordo com o pretenso nacionalismo do regime fascista português. Mas as passagens transcritas são mais do que suficientes para ilustrar o principal – Fernando Pessoa não tinha nada a ver com o totalitarismo salazarista. E se quisermos concluir temos de recorrer à sua autobiografia de 30-3-1935:


Ideologia política: Considera que o sistema monárquico será o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes votaria, embora com pena, pela República. Conservador de tipo inglês, isto é, liberal dentro do conservadorismo, e absolutamente anti-reacionário.